segunda-feira, 7 de maio de 2012

Fichamento - Autoapresentação e gerenciamento de impressões em redes sociais digitais 3/3

O’HARA, Kieron; TUFFIELD, Mischa M.; SHADBOLT, Nigel. Lifelogging: Privacy and empowerment with Memories for Life. Identity in the Information Society, v.1, n. 1 2008 (p.155- 172).


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Por Felippe Thomaz, Fernanda Braga e Pedro Cordier



Sobre os autores:
KIERON O’HARA é pesquisador em Eletrônica e Ciência da Computação na Universidade de Southampton, no Reino Unido. Seu estudo dialoga com as áreas da filosofia, sociologia, políticas de tecnologia, particularmente o World Wide Web e Semantic Web.

MISCHA M. TUFFIELD é PhD pela Universidade de Southampton, sob a orientação de Nigel Shadbolt. Seus interesses na academia estão voltados à informação pessoal, propriedade de dados, privacidade e Semantic Web. Tuffield também é membro do W3C’s RDF Working Group.

NIGEL SHADBOLT é professor de Inteligência Artificial na Universidade de Southampton, além de ser diretor da Web Science Trust e da Web Foundation, organizações voltadas à promoção dos impactos positivos da Web sobre a sociedade.

Objetivos do capítulo: Discorre sobre a prática do lifelogging – coleção de informações acerca do comportamento e da vida de indivíduos no âmbito da internet – em uma abordagem que contempla aspectos problemáticos e potencializadores da exposição de informações pessoais ao círculo público da Web. Os autores observam algumas ferramentas técnicas discutindo-as sob a perspectiva da privacidade e identidade, considerando ambas as questões como intrigantes e problemáticas no contexto digital.

Argumentação Central: Os autores consideram que, em geral, as abordagens acerca da privacidade na web estão dissipadas e apontam para o engano destas pesquisas em presumir que as informações adquiridas são para uso privado. No caso, os pesquisadores de Southampton partem de uma perspectiva onde tais informações têm função pública e serão, neste sentido, deliberadamente disponibilizadas em domínio público.

Tópico 1 - Introduction: A discussão parte inicialmente de uma abordagem relacionada à memória e à estocagem de informações em suporte digital. Devido à maior capacidade das máquinas de armazenar dados, a relação com a memória pessoal é modificada. Não há mais necessidade de selecionar o que deverá ser estocado, uma vez que o aumento desta capacidade permite grandes quantidades de dados (em imagem, texto, som e demais extensões). Neste sentido, é gerada a necessidade de um gerenciamento de informação pessoal (PIM – Personal Information Management). A United Kingdom Computer Research Committee enquadrou a problemática de gerenciamento de “dados da vida” sob a alcunha de “Memories for Life”, o que, segundo eles, é um grand challenge para a pesquisa em computação.
Neste ínterim, emerge o conceito de lifelogging, que abarca a ideia de armazenamento indiscriminado de informações digitais que remetem às preferências e condutas do indivíduo. Segundo os autores, esta prática divide-se em duas vertentes: a) passiva, através dos tipos produtos adquiridos e b) ativa, o indivíduo dispõe de recurso e sensores através dos quais irá registrar e criar uma imagem de sua própria vida. É válido considerar de antemão que tais informações serão reunidas conforme os interesses dos usuários. Dentre alguns exemplos de fontes de informação é possível citar e-mails enviados e recebidos, downloads de músicas, informações do web browser (histórico de navegação, favoritos, downloads etc.), EXIF data de fotografias e sensores biométricos. As informações geradas por comunidades tendem a crescer em importância devido à configuração da Web 2.0, marcada pela participação direta do usuário na estrutura da rede através da facilidade na criação de conteúdo. Outra fonte de informação ressaltada no texto é a geodata, dados de localização e rastreamento derivados da incorporação de GPS nos dispositivos móveis. Utilizando aplicativos em celulares, os lifeloggers podem fornecer dados posicionais e adicionar informações complementares, suprimindo as limitações técnicas dos sistemas de GPS.
Ao final da introdução, os autores abrem margem às discussões posteriores voltando a atenção ao propósito do lifelogging como variável conforme o usuário, podendo este, inclusive, não saber o motivo pelo qual armazena dados pessoais. Além disso, a prática de lifelogging corrobora o potencial do indivíduo em manter controle sobre a própria identidade, evidenciando ou omitindo alguns traços de sua personalidade – o que, posteriormente, no texto, será contemplado ao observar a possibilidade de edição das informações enviadas/armazenadas.


Tópico 2 – Lifelogging:
Segundo os autores, a prática de lifelogging não data de dias recentes. Ao citar o projeto LifeLog da DARPA (American Defense and Advanced Research Projects Agency), emerge a questão da “memória episódica” (episodic memory), refletida na intencionalidade do projeto do governo americano quando este se propõe a “traçar os ‘tópicos’ da vida de um indivíduo no tocante aos eventos, estados e relações” (p. 5). Uma ilustração clara é a organização de tais eventos em pontos determinados em uma timeline. O projeto LifeLog recebeu diversas críticas e foi cancelado em 2004, no entanto, há interesse militar e tecnológico na obtenção e armazenamento de informações pessoais.
Os autores ainda ressaltam outro projeto, MyLifeBits, da Microsoft, cuja a intencionalidade se volta ao exaustivo trabalho de digitalizar todos os documentos em todas as mídias. Iniciado em 2001, sob a tutela de Gordon Bell, o projeto foi pensado como um depósito de informações passíveis de consulta, busca e recuperação, assim como ferramentas para novas capturas.
Ainda, ressaltam os experimentos de Steve Mann, “o primeiro ciborgue do mundo”. Utilizando o EyeTap, uma prótese de memória visual, Mann transformou seu olho em uma câmera e seu corpo em um servidor da web, transformando seu campo de visão em gravações videográficas e disponibilizando-as na rede. Além de Mann, cita os experimentos de Jennifer Ringley e sua JenniCam, uma webcam registrando em totalidade os eventos em sua casa. As imagens foram exibidas na internet de forma bruta de 1996 a 2003[1]. Estas iniciativas apontam para uma roupagem experimental da prática de lifelog. Tais atividades são bem menos sutis do que as que serão descritas em outro momento no texto, como a utilização das redes sociais e o rastreamento por geodata. No entanto, os autores partem para a descrição das tecnologias da web semântica.

Tópico 3 – Semantic Web Technologies:
Neste ponto, a atenção se volta a uma breve descrição técnica da web semântica no intuito de compreender de que forma os dados podem ser recombinados na prática de lifelogging. A organização de informações heterogêneas em variáveis comuns a humanos e computadores, ou seja, a construção de uma “rede de dados” é o ideia base deste movimento colaborativo de extensão da web atual. Liderados pela W3C (World Wide Web Consortium), a web semântica requer conhecimento de RDF, SPARQL, URIs e FOAF (p. 7). Tal estrutura permite (e promove) o compartilhamento e o direcionamento de fontes de informação entre comunidades.

Tópico 4 - Services:
Segundo os autores, a quantidade de informação bruta coletada não infere diretamente na utilidade ou finalidade destes dados.  A estrutura ideal do lifelogging não deve ser somente da perspectiva das fontes de informação, mas dos serviços providos. Aqui, destaca-se a linguagem RDF como mediadora de interações entre fontes de informação e serviços. A exemplo, podemos observar os mecanismos de recomendação em lojas virtuais que, a partir das associações feitas pelo usuário, organiza uma série de sugestões de itens similares. Os autores, ligados à área da ciência da computação, apontam para algumas melhorias porvir neste sistema de busca. Dentre elas, citam a possibilidade de estas associações serem mais “finas”, relacionando as sugestões com as circunstâncias de navegação e a localização física do usuário. Ou seja, se o usuário ouve determinado tipo de música no carro e não o faz no ambiente de trabalho, as músicas sugeridas enquanto dirige são do gênero de sua preferência nesta circunstância específica.
Apontam ainda para os metadados como facilitadores da busca e recuperação de informações, sobretudo em multimídia. Além disso, apresentam a possibilidade de criação de uma espécie de avatar como mediador da interação do usuário com outros usuários no ambiente digital. Esta representação seria a interface entre o ator e o meio online. Por fim, ressalta a questão da telemedicina, através da provisão dos dados médicos do usuário (citando exemplos como GoogleHealth e PatientsLikeMe).

Tópico 5 – Non-solipsistic lifelogging:
Neste ponto, os autores apontam para a compreensão equivocada do lifelogging como prática individualista. Segundo eles, a ideia de reunir informações sobre si mesmo para posterior consulta é errônea, considerando, sobretudo, a configuração da Web 2.0 e das redes sociais. Tais estruturas levaram o usuário a repensar o compartilhamento de informações partindo da premissa de compartilhamento com os demais usuários (vídeos no Youtube e fotos no Flickr expostos no “mural” do Facebook, por exemplo). Neste sentido, a prática de lifelogging pode ser enriquecida através da integração ou do cruzamento de informações com os outros usuários da rede. Esta relação complexa entre o que é compartilhado ou omitido pelo usuário consiste no próprio “estilo de vida tecnológico” emergente nestes meios. A partir do momento que os “episódios” são compartilhados nas redes sociais o controle sobre estas informações se complexifica. Na página 12, eles afirmam que “a imagem do usuário emerge em um sentido mais social que introspectivo”, rejeitando a ideia de lifelogging como uma prática de cunho individualista e assumindo-a em um contexto amplo de conexões entre atores sociais no ambiente digital.

Tópico 6 – Privacy, Identity and Accountability – Privacy Concerns:
Devido à própria complexidade existente entre lifelogging e redes sociais, torna-se difícil precisar a trajetória das informações que circulam no âmbito social digital. As questões relacionadas à privacidade começam a emergir no texto, sob a alegação de evidência empírica da preferência de bloggers por leitores desconhecidos que pessoas em menor distância social (referenciam esta questão ao estudo de Sorapure, 2003).
Como premissa às preocupações acerca da privacidade, os autores se voltam à confiança e confiabilidade nas conexões causais da web, dividindo-as em duas classificações: a) Weberiana: relação de confiabilidade à confiança, default da web e da web semântica. Ou seja, o que deseja obter a confiança age, através de inúmeras ferramentas, para se apresentar confiável. A relação se constitui no intuito de minimizar os riscos. b) Durkheimiana: parte da confiança à confiabilidade. Considerando as pessoas como seres sociais, a questão está no convite para participar da comunidade e, a partir daí, desempenhar uma postura confiável. É a roupagem das redes sociais digitais, por exemplo, onde se adiciona um desconhecido como “amigo” e, só depois, uma relação de confiança/amizade se estabelece, estando esta também sujeita a uma postura de indiferença entre os participantes da interação. Os autores apontam para a emergência de uma “cultura da suspeita”, dado os riscos envolvidos no estabelecimento de laços de confiança e a ameaça à privacidade, sobretudo no lifelogging.
Ao realizarem uma releitura da obra de Allen (2008), os autores observam algumas preocupações na prática de lifelogging, a seguir: a) casos onde preservar a memória é algo danoso à imagem do indivíduo (fotos de um episódio vexatório circulando nas redes sociais, por exemplo); b) a contemplação do passado em uma perspectiva patológica, evidenciando uma preocupação com a questão da saúde mental. No entanto, a contraargumentação dos autores oferece outro olhar sobre o armazenamento de “dados da vida”, uma vez que estas informações detalhadas poderão fornecer um auxílio ao processo psicoterapêutico do indivíduo; c) a vigilância nociva a partir dos dados fornecidos é também um tópico que inquieta Allen, sobretudo no tocante ao acesso irrestrito do governo a tais informações e ao fato de que as ferramentas utilizadas para acessar informações sobre si são as mesmas no acesso a informações sobre os outros.
O posicionamento dos autores, no entanto, evidencia uma aproximação mais técnica a tais ferramentas de armazenamento, considerando-as como neutras. Se por um lado, as informações podem ser incriminatórias no momento em que evidenciam atividades que estariam omitidas em uma interação face-to-face e as sustenta no tempo (informações continuam on-line), por outro, são menos incriminatórias quando fornecem também o contexto e circunstância em que ocorreram tais ações. A prática de lifelogging, segundo eles, não implica necessariamente em um falseamento do comportamento, mas tais comportamentos provêm da relação com a privacidade. Ou seja, o lifelogging não reduz a expectativa de privacidade, mas a expectativa de privacidade dita as práticas de armazenamento de “dados da vida”. As inquietações acerca da maneira como o indivíduo se apresenta em relação à expectativa de privacidade no ambiente de interação é melhor discutida no tópico seguinte, Identidade.

Tópico 7 - Identity:
“O lifelog (aqui, cabendo o risco de traduzir enquanto “registro de vida”) para o lifelogger pode constituir a pessoal ‘real’” (p. 20). Partindo desta premissa, os autores consideram o lifelog como algo maior do que um simples aglomerado de dados e evidenciam estas informações como peças de um mosaico maior, a identidade como um constructo e não algo dado em “essência”. Neste sentido, o sujeito disponibiliza algumas informações no intuito de ser identificado pelo sistema, considerando o “lifelog como uma identidade plausível” (p. 21). As questões de privacidade emergem, pois, da relação entre o desejo de maximizar o fluxo de informações e o desejo de alto nível de proteção destas, para preservar a privacidade (uma relação que os próprios autores consideram “aparentemente contraditória”). Aqui cabe a distinção entre as informações do usuário que são “compartilháveis” e aquelas que “constituem alguém”, tidas como mais restritas.
Em seguida, há uma crítica à ideia simplista de que “somos nossas informações”. Considerando             a complexidade na constituição do self, a ideia de que um banco de dados contempla todas as nuances psicológicas e comportamentais do indivíduo é rebatida. O lifelog, segundo a proposta de O’Hara e demais autores, não pode ser pensado como a identidade em si, mas como um conjunto de elementos pelos quais o usuário se apresenta em diversos contextos (contemplando, obviamente, a possibilidade de edição das informações enviadas à rede). Com estes recursos, o lifelogger pode criar e sustentar outras personalidades para alcançar determinados objetivos no mundo on-line.
Posteriormente, é descrita tecnicamente o processo de criação de uma identidade digital no contexto da web semântica (p. 23). De maneira reduzida, o Semantic Logger produz uma fusão de dados dispersos em diversos ambientes da rede e os reúne em um único KB (knowledge base), fornecendo uma visão geral das informações pessoais publicadas na internet.

Tópico 8 – Accountability of the individual:
No presente tópico, os autores descrevem efeitos positivos do lifelogging, iniciando pela possibilidade de compensar representações do passado. Accountability, segundo Allen, consiste na expectativa ou requerimento em informar, explicar ou justificar determinada conduta, com a possibilidade de punição de acordo com a ação desempenhada. O lifelogger, neste viés, tem a disposição uma gama de ferramentas pelas quais poderá fornecer informações que satisfarão as expectativas da interação. Para atestar a autenticidade das informações, o usuário precisa de um certo nível de prova. Ao exemplificar com o caso de manipulação do lifelog para fugir de uma acusação de terrorismo, os autores afirmam que  “quanto maior a evidência contra o indivíduo, mais contundente sua prova necessita ser” (p. 25). Quanto mais rico o acervo de referências em um lifelog, mais convincente se torna.

Tópico 9 – Accountability of others:
Este breve tópico discute a “sousveillance” que, em linhas gerais, deve ser compreendido como o processo de registro de eventos pela comunidade. Tal atividade apoiaria o monitoramento das autoridades (maus tratos de policiais, por exemplo) pelos usuários comuns da rede. Ao levar em consideração a busca do lifelogger pelo bem estar de sua comunidade, é válido ressaltar a importância da disponibilização de ferramentas pelas quais o indivíduo poderá monitorar as autoridades, enviando tais registros à rede.

Tópicos 10 e 11 – Discussion e Conclusion:
Na parte final do texto, os autores resumem a discussão assumindo uma postura otimista com relação à prática do lifelogging. Apesar de reconhecerem alguns riscos, eles afirmam que esta atividade é uma janela para pensar questões ligadas à regulação e privacidade, apontando alguns estudos complementares que discutem lifelogging em outros vieses. Dentre as preocupações dos autores, está a possibilidade iminente das informações enviadas pelos usuários serem utilizadas para vigilância destes, como no caso do projeto LifeLog da DARPA. Neste sentido, ter conhecimento dos dados que podem ser visto pelos demais é um passo importante na preservação da privacidade dos usuários. Este ponto incide diretamente nas questões relacionadas ao maior controle sobre a própria identidade nos meios digitais, como defendido pelos autores anteriormente. A possibilidade de editar a maneira pela qual se apresentará aos demais corrobora esta questão. O usuário pode deletar informações que não julgue interessantes para si, embora esta postura contradiga o ethos do lifelogging.

Em suma, a prática de lifelogging é vista pelos autores como potencializadora para o usuário, no momento em que este exerce controle sobre quais informações poderão ser usadas na construção de uma identidade pessoal on-line.



[1] Segundo os autores, inicialmente Jennifer filtrava os momentos privados, mas a maioria do experimento se deu de forma bruta, sem filtragem.




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