O’HARA, Kieron; TUFFIELD, Mischa M.; SHADBOLT, Nigel. Lifelogging:
Privacy and empowerment with Memories for Life. Identity in the Information
Society, v.1, n. 1 2008 (p.155- 172).
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Por Felippe Thomaz, Fernanda Braga e Pedro Cordier
Sobre os autores:
KIERON O’HARA é pesquisador em Eletrônica e Ciência da Computação na
Universidade de Southampton, no Reino Unido. Seu estudo dialoga com as áreas da
filosofia, sociologia, políticas de tecnologia, particularmente o World Wide
Web e Semantic Web.
MISCHA M. TUFFIELD é PhD pela Universidade de Southampton, sob a
orientação de Nigel Shadbolt. Seus interesses na academia estão voltados à
informação pessoal, propriedade de dados, privacidade e Semantic Web. Tuffield
também é membro do W3C’s RDF Working Group.
NIGEL SHADBOLT é professor de
Inteligência Artificial na Universidade de Southampton, além de ser diretor da
Web Science Trust e da Web Foundation, organizações voltadas à promoção dos
impactos positivos da Web sobre a sociedade.
Objetivos do capítulo: Discorre
sobre a prática do lifelogging – coleção
de informações acerca do comportamento e da vida de indivíduos no âmbito da
internet – em uma abordagem que contempla aspectos problemáticos e
potencializadores da exposição de informações pessoais ao círculo público da
Web. Os autores observam algumas ferramentas técnicas discutindo-as sob a
perspectiva da privacidade e identidade, considerando ambas as questões como
intrigantes e problemáticas no contexto digital.
Argumentação
Central: Os autores consideram que, em geral, as abordagens acerca da
privacidade na web estão dissipadas e apontam para o engano destas pesquisas em
presumir que as informações adquiridas são para uso privado. No caso, os
pesquisadores de Southampton partem de uma perspectiva onde tais informações
têm função pública e serão, neste sentido, deliberadamente disponibilizadas em
domínio público.
Tópico 1 - Introduction: A
discussão parte inicialmente de uma abordagem relacionada à memória e à
estocagem de informações em suporte digital. Devido à maior capacidade das
máquinas de armazenar dados, a relação com a memória pessoal é modificada. Não
há mais necessidade de selecionar o que deverá ser estocado, uma vez que o
aumento desta capacidade permite grandes quantidades de dados (em imagem,
texto, som e demais extensões). Neste sentido, é gerada a necessidade de um
gerenciamento de informação pessoal (PIM – Personal Information Management). A
United Kingdom Computer Research Committee enquadrou a problemática de
gerenciamento de “dados da vida” sob a alcunha de “Memories for Life”, o que,
segundo eles, é um grand challenge para
a pesquisa em computação.
Neste
ínterim, emerge o conceito de lifelogging,
que abarca a ideia de armazenamento indiscriminado de informações digitais que
remetem às preferências e condutas do indivíduo. Segundo os autores, esta
prática divide-se em duas vertentes: a) passiva, através dos tipos produtos adquiridos
e b) ativa, o indivíduo dispõe de recurso e sensores através dos quais irá
registrar e criar uma imagem de sua própria vida. É válido considerar de
antemão que tais informações serão reunidas conforme os interesses dos
usuários. Dentre alguns exemplos de fontes de informação é possível citar e-mails enviados e recebidos, downloads de músicas, informações do web browser (histórico de navegação,
favoritos, downloads etc.), EXIF data
de fotografias e sensores biométricos. As informações geradas por comunidades
tendem a crescer em importância devido à configuração da Web 2.0, marcada pela
participação direta do usuário na estrutura da rede através da facilidade na criação
de conteúdo. Outra fonte de informação ressaltada no texto é a geodata, dados de localização e
rastreamento derivados da incorporação de GPS nos dispositivos móveis.
Utilizando aplicativos em celulares, os lifeloggers
podem fornecer dados posicionais e adicionar informações complementares,
suprimindo as limitações técnicas dos sistemas de GPS.
Ao final
da introdução, os autores abrem margem às discussões posteriores voltando a
atenção ao propósito do lifelogging como
variável conforme o usuário, podendo este, inclusive, não saber o motivo pelo
qual armazena dados pessoais. Além disso, a prática de lifelogging corrobora o potencial do indivíduo em manter controle
sobre a própria identidade, evidenciando ou omitindo alguns traços de sua
personalidade – o que, posteriormente, no texto, será contemplado ao observar a
possibilidade de edição das informações enviadas/armazenadas.
Tópico 2 – Lifelogging:
Segundo
os autores, a prática de lifelogging
não data de dias recentes. Ao citar o projeto LifeLog da DARPA (American
Defense and Advanced Research Projects Agency), emerge a questão da “memória
episódica” (episodic memory),
refletida na intencionalidade do projeto do governo americano quando este se
propõe a “traçar os ‘tópicos’ da vida de um indivíduo no tocante aos eventos,
estados e relações” (p. 5). Uma ilustração clara é a organização de tais
eventos em pontos determinados em uma timeline.
O projeto LifeLog recebeu diversas críticas e foi cancelado em 2004, no
entanto, há interesse militar e tecnológico na obtenção e armazenamento de
informações pessoais.
Os
autores ainda ressaltam outro projeto, MyLifeBits, da Microsoft, cuja a
intencionalidade se volta ao exaustivo trabalho de digitalizar todos os
documentos em todas as mídias. Iniciado em 2001, sob a tutela de Gordon Bell, o
projeto foi pensado como um depósito de informações passíveis de consulta,
busca e recuperação, assim como ferramentas para novas capturas.
Ainda,
ressaltam os experimentos de Steve Mann, “o primeiro ciborgue do mundo”. Utilizando
o EyeTap, uma prótese de memória visual, Mann transformou seu olho em uma
câmera e seu corpo em um servidor da web,
transformando seu campo de visão em gravações videográficas e
disponibilizando-as na rede. Além de Mann, cita os experimentos de Jennifer
Ringley e sua JenniCam, uma webcam registrando em totalidade os eventos em sua
casa. As imagens foram exibidas na internet de forma bruta de 1996 a 2003[1].
Estas iniciativas apontam para uma roupagem experimental da prática de lifelog. Tais atividades são bem menos
sutis do que as que serão descritas em outro momento no texto, como a
utilização das redes sociais e o rastreamento por geodata. No entanto, os autores
partem para a descrição das tecnologias da web semântica.
Tópico 3
– Semantic Web Technologies:
Neste
ponto, a atenção se volta a uma breve descrição técnica da web semântica no
intuito de compreender de que forma os dados podem ser recombinados na prática
de lifelogging. A organização de
informações heterogêneas em variáveis comuns a humanos e computadores, ou seja,
a construção de uma “rede de dados” é o ideia base deste movimento colaborativo
de extensão da web atual. Liderados pela W3C (World Wide Web Consortium), a web semântica requer conhecimento de
RDF, SPARQL, URIs e FOAF (p. 7). Tal estrutura permite (e promove) o
compartilhamento e o direcionamento de fontes de informação entre comunidades.
Tópico 4 - Services:
Segundo os autores, a quantidade de informação
bruta coletada não infere diretamente na utilidade ou
finalidade destes dados. A estrutura ideal do lifelogging não deve ser
somente da perspectiva das fontes de informação, mas dos serviços providos.
Aqui, destaca-se a linguagem RDF como mediadora de interações entre fontes de
informação e serviços. A exemplo, podemos observar os mecanismos de
recomendação em lojas virtuais que, a partir das associações feitas pelo
usuário, organiza uma série de sugestões de itens similares. Os autores, ligados
à área da ciência da computação, apontam para algumas melhorias porvir neste
sistema de busca. Dentre elas, citam a possibilidade de estas associações serem
mais “finas”, relacionando as sugestões com as circunstâncias de navegação e a
localização física do usuário. Ou seja, se o usuário ouve determinado tipo de
música no carro e não o faz no ambiente de trabalho, as músicas sugeridas
enquanto dirige são do gênero de sua preferência nesta circunstância
específica.
Apontam ainda para os metadados como facilitadores
da busca e recuperação de informações, sobretudo em multimídia. Além disso,
apresentam a possibilidade de criação de uma espécie de avatar como mediador da
interação do usuário com outros usuários no ambiente digital. Esta
representação seria a interface entre o ator e o meio online. Por fim, ressalta
a questão da telemedicina, através da provisão dos dados médicos do usuário
(citando exemplos como GoogleHealth e PatientsLikeMe).
Tópico 5 – Non-solipsistic lifelogging:
Neste
ponto, os autores apontam para a compreensão equivocada do lifelogging como prática individualista. Segundo eles, a ideia de
reunir informações sobre si mesmo para posterior consulta é errônea,
considerando, sobretudo, a configuração da Web 2.0 e das redes sociais. Tais
estruturas levaram o usuário a repensar o compartilhamento de informações
partindo da premissa de compartilhamento com os demais usuários (vídeos no
Youtube e fotos no Flickr expostos no “mural” do Facebook, por exemplo). Neste
sentido, a prática de lifelogging pode ser enriquecida através da integração ou
do cruzamento de informações com os outros usuários da rede. Esta relação
complexa entre o que é compartilhado ou omitido pelo usuário consiste no
próprio “estilo de vida tecnológico” emergente nestes meios. A partir do
momento que os “episódios” são compartilhados nas redes sociais o controle
sobre estas informações se complexifica. Na página 12, eles afirmam que “a
imagem do usuário emerge em um sentido mais social que introspectivo”,
rejeitando a ideia de lifelogging como uma prática de cunho individualista e
assumindo-a em um contexto amplo de conexões entre atores sociais no ambiente
digital.
Tópico 6
– Privacy, Identity and Accountability – Privacy Concerns:
Devido à
própria complexidade existente entre lifelogging e redes sociais, torna-se difícil
precisar a trajetória das informações que circulam no âmbito social digital. As
questões relacionadas à privacidade começam a emergir no texto, sob a alegação
de evidência empírica da preferência de bloggers por leitores desconhecidos que
pessoas em menor distância social (referenciam esta questão ao estudo de
Sorapure, 2003).
Como
premissa às preocupações acerca da privacidade, os autores se voltam à
confiança e confiabilidade nas conexões causais da web, dividindo-as em duas
classificações: a) Weberiana: relação de confiabilidade à confiança, default da web e da web semântica.
Ou seja, o que deseja obter a confiança age, através de inúmeras ferramentas,
para se apresentar confiável. A relação se constitui no intuito de minimizar os
riscos. b) Durkheimiana: parte da confiança à confiabilidade. Considerando as
pessoas como seres sociais, a questão está no convite para participar da
comunidade e, a partir daí, desempenhar uma postura confiável. É a roupagem das
redes sociais digitais, por exemplo, onde se adiciona um desconhecido como
“amigo” e, só depois, uma relação de confiança/amizade se estabelece, estando
esta também sujeita a uma postura de indiferença entre os participantes da
interação. Os autores apontam para a emergência de uma “cultura da suspeita”,
dado os riscos envolvidos no estabelecimento de laços de confiança e a ameaça à
privacidade, sobretudo no lifelogging.
Ao
realizarem uma releitura da obra de Allen (2008), os autores observam algumas
preocupações na prática de lifelogging,
a seguir: a) casos onde preservar a memória é algo danoso à imagem do indivíduo
(fotos de um episódio vexatório circulando nas redes sociais, por exemplo); b)
a contemplação do passado em uma perspectiva patológica, evidenciando uma
preocupação com a questão da saúde mental. No entanto, a contraargumentação dos
autores oferece outro olhar sobre o armazenamento de “dados da vida”, uma vez
que estas informações detalhadas poderão fornecer um auxílio ao processo psicoterapêutico
do indivíduo; c) a vigilância nociva a partir dos dados fornecidos é também um
tópico que inquieta Allen, sobretudo no tocante ao acesso irrestrito do governo
a tais informações e ao fato de que as ferramentas utilizadas para acessar
informações sobre si são as mesmas no acesso a informações sobre os outros.
O
posicionamento dos autores, no entanto, evidencia uma aproximação mais técnica
a tais ferramentas de armazenamento, considerando-as como neutras. Se por um
lado, as informações podem ser incriminatórias no momento em que evidenciam
atividades que estariam omitidas em uma interação face-to-face e as sustenta no tempo (informações continuam
on-line), por outro, são menos incriminatórias quando fornecem também o
contexto e circunstância em que ocorreram tais ações. A prática de lifelogging, segundo eles, não implica
necessariamente em um falseamento do comportamento, mas tais comportamentos
provêm da relação com a privacidade. Ou seja, o lifelogging não reduz a expectativa de privacidade, mas a expectativa
de privacidade dita as práticas de armazenamento de “dados da vida”. As
inquietações acerca da maneira como o indivíduo se apresenta em relação à
expectativa de privacidade no ambiente de interação é melhor discutida no
tópico seguinte, Identidade.
Tópico 7
- Identity:
“O lifelog (aqui, cabendo o risco
de traduzir enquanto “registro de vida”) para o lifelogger pode constituir a
pessoal ‘real’” (p. 20). Partindo desta premissa, os autores consideram o
lifelog como algo maior do que um simples aglomerado de dados e evidenciam
estas informações como peças de um mosaico maior, a identidade como um
constructo e não algo dado em “essência”. Neste sentido, o sujeito
disponibiliza algumas informações no intuito de ser identificado pelo sistema,
considerando o “lifelog como uma identidade plausível” (p. 21). As questões de
privacidade emergem, pois, da relação entre o desejo de maximizar o fluxo de
informações e o desejo de alto nível de proteção destas, para preservar a
privacidade (uma relação que os próprios autores consideram “aparentemente
contraditória”). Aqui cabe a distinção entre as informações do usuário que são
“compartilháveis” e aquelas que “constituem alguém”, tidas como mais restritas.
Em seguida, há uma crítica à
ideia simplista de que “somos nossas informações”. Considerando a complexidade na constituição do
self, a ideia de que um banco de dados contempla todas as nuances psicológicas
e comportamentais do indivíduo é rebatida. O lifelog, segundo a proposta de O’Hara e demais autores, não pode
ser pensado como a identidade em si, mas como um conjunto de elementos pelos
quais o usuário se apresenta em diversos contextos (contemplando, obviamente, a
possibilidade de edição das informações enviadas à rede). Com estes recursos, o
lifelogger pode criar e sustentar
outras personalidades para alcançar determinados objetivos no mundo on-line.
Posteriormente, é descrita
tecnicamente o processo de criação de uma identidade digital no contexto da web
semântica (p. 23). De maneira reduzida, o Semantic
Logger produz uma fusão de dados dispersos em diversos ambientes da rede e
os reúne em um único KB (knowledge base),
fornecendo uma visão geral das informações pessoais publicadas na internet.
Tópico 8 – Accountability of the individual:
No presente tópico, os autores
descrevem efeitos positivos do lifelogging,
iniciando pela possibilidade de compensar representações do passado. Accountability, segundo Allen, consiste
na expectativa ou requerimento em informar, explicar ou justificar determinada
conduta, com a possibilidade de punição de acordo com a ação desempenhada. O
lifelogger, neste viés, tem a disposição uma gama de ferramentas pelas quais
poderá fornecer informações que satisfarão as expectativas da interação. Para
atestar a autenticidade das informações, o usuário precisa de um certo nível de
prova. Ao exemplificar com o caso de manipulação do lifelog para fugir de uma acusação de terrorismo, os autores
afirmam que “quanto maior a evidência
contra o indivíduo, mais contundente sua prova necessita ser” (p. 25). Quanto
mais rico o acervo de referências em um lifelog, mais convincente se torna.
Tópico 9 – Accountability of others:
Este breve tópico discute a “sousveillance” que, em linhas gerais,
deve ser compreendido como o processo de registro de eventos pela comunidade.
Tal atividade apoiaria o monitoramento das autoridades (maus tratos de
policiais, por exemplo) pelos usuários comuns da rede. Ao levar em consideração
a busca do lifelogger pelo bem estar de sua comunidade, é válido ressaltar a
importância da disponibilização de ferramentas pelas quais o indivíduo poderá
monitorar as autoridades, enviando tais registros à rede.
Tópicos
10 e 11 – Discussion e Conclusion:
Na parte final do texto, os
autores resumem a discussão assumindo uma postura otimista com relação à
prática do lifelogging. Apesar de
reconhecerem alguns riscos, eles afirmam que esta atividade é uma janela para
pensar questões ligadas à regulação e privacidade, apontando alguns estudos
complementares que discutem lifelogging
em outros vieses. Dentre as preocupações dos autores, está a possibilidade
iminente das informações enviadas pelos usuários serem utilizadas para
vigilância destes, como no caso do projeto LifeLog da DARPA. Neste sentido, ter
conhecimento dos dados que podem ser visto pelos demais é um passo importante
na preservação da privacidade dos usuários. Este ponto incide diretamente nas
questões relacionadas ao maior controle sobre a própria identidade nos meios
digitais, como defendido pelos autores anteriormente. A possibilidade de editar
a maneira pela qual se apresentará aos demais corrobora esta questão. O usuário
pode deletar informações que não julgue interessantes para si, embora esta
postura contradiga o ethos do lifelogging.
Em suma, a prática de lifelogging é vista pelos autores como potencializadora para o
usuário, no momento em que este exerce controle sobre quais informações poderão
ser usadas na construção de uma identidade pessoal on-line.
[1]
Segundo os autores, inicialmente Jennifer filtrava os momentos privados, mas a
maioria do experimento se deu de forma bruta, sem filtragem.
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